terça-feira, 24 de abril de 2007

A pureza da infância



Jaú, 31 de maio de 1986.

Quando vi meu neto, em São Paulo, sentado, quieto, com atenção voltada à televisão, manejando o seu video game, confesso que fiquei apreensiva. Será que as crianças, na era da informática, com todos esses brinquedos eletrônicos, robôs, são mais felizes? Não parece.
Falta-lhes a liberdade. Ficam presas a esses brinquedos dentro de um apartamento, como pássaros na gaiola.
Na minha infância brincava-se ao ar livre, correndo, pulando, gritando com todas as forças dos pulmões.
Brincava-se de pique, amarelinha, roda, pular corda e correr atrás dos vagalumes.
"Vagalume-tem-tem, seu pai está aqui, sua mãe também". O vagalume vinha procurar os pais e nós pegávamos. Quem nos ensinou isso foi a Osméria, irmã da nossa cozinheira. Ela era líder, comandava as brincadeiras.
Mas, nos brinquedos, reinava a democracia. Não essa democracia, tão propalada pelos nossos políticos, em que um quer impor ao outro suas idéias, não respeitando opiniões contrárias. Vocês viram pelos jornais que até quiseram se intrometer no nosso Estado? Ainda bem que desenterraram nosso lema: Non ducor, duco. Arre, já era hora!
Nós resovíamos os nossos brinquedos, consultando as bases, isto é, nossas companheiras.
-Vamos brincar de pique? Quem quiser levante a mão.
Se a maioria o quisesse, íamos brincar de pique. Aí também, era resolvido democraticamente quem iria ser o pegador. Nada de privilégios. A escolha era através de um sorteio. Eram feitas as contagens: " Uma pomba foi no mar. Quantas penas ela leva? Ela leva vinte e quatro. Um, dois três e quatro". Quem caísse no quatro era o pegador. Não havia engodo. Era tudo às claras, sem trapaça, bem fiscalizado. Éramos piores que os fiscais do Sarney.
Nossa cidadezinha não era servida de via- férrea, mas brincávamos de trenzinho.
Osméria era maquinista, puxava os vagões, formado pelas crianças. Cada uma segurava na cintura da outra, com mão firme, porque o nosso trenzinho fazia acrobacias. Osméria não poupava os vagões. Ela era alta, pernas finas, desengonçada, mas louca para correr. E lá ia o trenzinho descendo a ribeira. Falávamos em uníssono: " Bota a faca, tira a faca, bota a faca , tira a faca..." E um grito imitando o apito. Era democrático o nosso trem. Embarcava nele quem quisesse, nada de apadrinhamento. Era um trem alegre, mas diferente do " Trem da Alegria" que corre no Senado, onde embarcam só os privilegiados, os parentes e apadrinhados. Bem que a minha mãe dizia que " quem não tem padrinho, morre pagão".
Também é melhor não haver trem na cidade, não é verdade?
Ver o " Trem da Alegria" passar e o povo pobre e humilde, sem poder embarcar, dá uma tristeza, não dá?
Que bom seria se todo trem fosse como o nosso, onde embarcava todo mundo, sem distinção, sem privilégios, feito com a pureza da infância.

VOVÓ GUITA






Eleições



Jaú, 15 de maio, de 1986.

As eleições, naquele lugarejo, eram realizadas com grandes festanças, para alegria de todos, principalmente das crianças.Era uma delícia! Não havia aula e enquanto meu pai se preocupava com seus eleitores, íamos atravessar o rio para colher ingá na outra margem. À beira daquele rio havia muitos ingazeiros ( será que ainda os há? ).
Mas as eleições traziam grande alvoroço. Aquela pacata cidadezinha se transformava! Ficava apinhada de gente! Eram eleitores que chegavam de todas as partes, a cavalo, a pé, de carroça e carro de boi. As estradas só davam passagem a essas conduções.
Todos eram recebidos pelos políticos que se desfaziam de gentilezas, iam para os "viveiros". Ali, eram servidas quantidades enormes de alimentos. Não faltavam os churrascos de carne de boi doados pelos companheiros do partido. Os gastos eram custeados pelo coronel e seus correligionários. Ninguém recebia ajuda externa. Gastava-se do próprio bolso.
" Viveiro" era o recinto onde ficavam os eleitores, naturalmente doutrinados.
Era lá que, à noite, eles mostravam a expressão artística do nosso caboclo, através do seu folclore. Dançavam cateretê em que batiam as mãos e os pés tão compassados, e com tantas habilidades, sob a cadência de uma viola, que ficávamos admirados como o conseguiam. Dançavam até fandangos! Também não tiravam o chapéu, nem para dançar! A cachaça rolava a cheio! Quando meu pai lá aparecia, os violeiros faziam um "desafio", agradecendo a hospitalidade. E como sabiam rimar! Naquele tempo o voto não era secreto. Se havia o seu lado negativo, também havia o positivo: cada macaco no seu galho, nada de ficar pulando de galho em galho. O eleitor era obrigado a manter a fidelidade partidária. A palavra empenhada era sagrada. Era aviltante trair o partido!
(qualquer semelhança à nossa conjuntura política atual, é mera coincidência).
Mulher também não votava (quanta discriminação!). Em compensação dava palpite.
Como a eleição era bastante acirrada, minha mãe temia por meu pai, que era sempre mesário. O mesário era o mais visado. Sobre ele recaia toda a responsabilidade.
é que se não fosse austero, havia "cambalacho". Ah! Se havia! Votava até defunto!
Mas não valia a pena o sacrifício? O candidato não prometeu mundos e fundos? Tem que cumprir! Promessa é divida!
Terminada a eleição a vidinha, naquele lugarejo, voltava ao normal. Não modificava nada. O tempo passava, nossa estrada continuava intransitável, a ponte sobre o rio Turvo prestes a ruir e ...Cadê o deputado? Virara a " Conceição" do Cauby Peixoto ( se sumiu, ninguém sabe , ninguém viu) sumia do mapa. E as promessas? O vento as levou! Está vendo , meu neto, como éramos ludibriados?
Ainda bem que as coisas mudaram !!! Será? Você não está vendo pelos jornais?
Ah ! Meu neto, tudo neste mundo se repete!

VOVÓ GUITA